“O Boavista está a morrer diante dos nossos olhos”

O Estádio do Bessa nunca foi um lugar de silêncio. Durante décadas, viveu de gritos, batuques e vozes roucas a empurrar o Boavista contra gigantes. Hoje, porém, o som que reina é o do vazio. O vento percorre as bancadas, arrasta papéis esquecidos e faz ranger as cadeiras axadrezadas, gastas de tanto tempo. O letreiro na fachada parece envelhecido, como se também ele tivesse desistido de esperar.

Quem passa na Avenida da Boavista reconhece o estádio, mas já não vê o mesmo clube. O Boavista que foi campeão nacional em 2001, que fez o Porto orgulhar-se e que enfrentava de igual para igual os grandes, é agora uma sombra — suspenso entre a nostalgia e a falência.

A SAD está atolada em dívidas e processos judiciais. O clube-mãe tenta manter-se à tona, agarrado ao nome e à história. E os adeptos dividem-se entre os que ainda acreditam num milagre e os que já se despediram, guardando apenas o símbolo e a saudade.

Alguns ainda sobem as escadas do Bessa, só para espreitar o relvado por entre as grades. Outros preferem nem olhar. “Dói demais ver isto assim”, desabafa um sócio antigo.

O que antes era casa, agora é ruína. E, ainda assim, ninguém larga. O amor pelos clubes condenados é uma espécie de doença incurável — dói, mas não passa.

A fénix que não levantou voo

O jogo entre o Boavista e o Panteras Negras FC, marcado para 5 de outubro, era para ser um símbolo de renascimento. Mas transformou-se em mais um episódio do caos que tomou conta do clube.

Na véspera, o Boavista Futebol Clube divulgou um comunicado oficial. Nele, a Direção informava os associados e adeptos de que pedira à Associação de Futebol do Porto a anulação do encontro da 3.ª jornada da Série 5 da I Divisão Distrital, após o Panteras Negras recusar o adiamento.
O pedido, explicou o clube, seria equiparado a uma falta de comparência, implicando perda de três pontos e multa.

A Direção justificou a impossibilidade de jogar com a incapacidade de inscrever jogadores, uma situação que, garantiu, não resulta de “responsabilidade direta do Boavista FC”, mas dos impedimentos FIFA aplicados à Boavista SAD.

Por força dos regulamentos, o clube é considerado solidariamente responsável, o que o impede de registar atletas e de competir normalmente. “Estamos a trabalhar para resolver a situação e permitir que a equipa sénior entre em campo ainda nesta época”, prometeu o comunicado, acrescentando que o processo está a ser acompanhado pela administradora de insolvência, em contacto permanente com a SAD.

Mas do outro lado, a paciência esgotou-se. O Panteras Negras FC, nascido da iniciativa de adeptos e antigos dirigentes boavisteiros, acusou a direção liderada por Rui Garrido Pereira de lançar “falsas promessas de inscrição” e de beneficiar da “permissividade” da AF Porto.

“Por nós, não continuarão a matar o Boavista FC”, respondeu o novo clube em tom de revolta.

Enquanto isso, a outra equipa — aquela formada pela Boavista SAD, liderada por Jorge Couto — conseguiu finalmente estrear-se na Liga Pro da AF Porto, depois de adiar três partidas consecutivas.

Jogou com uma maioria de juniores, tentando contornar as restrições de inscrição impostas pela FIFA, e acabou por perder com o Nogueirense, por 2-0.

O que devia ser apenas uma questão administrativa tornou-se uma metáfora cruel da crise: o Boavista dividido em duas equipas, dois clubes e duas dores — uma presa à história, outra a tentar sobreviver entre os destroços.

A queda anunciada

A falha de inscrição na Liga Portugal foi o golpe final. A SAD não apresentou as certidões fiscais e contributivas exigidas. A exclusão era inevitável — e, no fundo, já ninguém podia fingir surpresa.

As dívidas acumuladas, as promessas falhadas e a ausência de transparência arrastaram o Boavista para fora do futebol profissional.

“Quando uma SAD cai, o clube é que paga”, explica o jurista desportivo Tiago Souto.

Litos, símbolo dos anos dourados, chamou-lhe “vergonha”. Outros foram mais duros: “um assassínio anunciado”.

Nos corredores do Bessa, o rumor é sempre o mesmo: há milhões por pagar. A Autoridade Tributária, a Segurança Social, jogadores, funcionários e fornecedores esperam há demasiado tempo.

O clube contra a sua sombra

O divórcio entre o Boavista Clube e a Boavista SAD está consumado.
O clube acusa a sociedade de incumprimentos e de o ter deixado sem voz. A SAD, atolada em dívidas e processos, mantém o silêncio.
Entre os dois, o Bessa — imóvel, silencioso, à espera de saber quem vai herdar o que restar.

No Porto, o Boavista sempre foi o outro. O clube das famílias, das ruas antigas, da diferença. Ser boavisteiro nunca foi uma escolha fácil.

“O Boavista é o retrato do país: gerido por quem não sente e pago por quem sofre”, atira um adepto, num tom amargo, à porta de um café quase vazio.

“Fomos campeões e agora estamos nos distritais”, disse também António Moreira, com 74 anos, a olhar para o estádio ao longe.

Ana Rita, 27 anos, filha de um antigo sócio, encara o Bessa como se fosse um parente em coma: “O meu pai levava-me aos jogos quando eu era miúda. O estádio enchia, havia cânticos e bandeiras. Agora só se ouve o vento. E o vento dói.”

“Talvez seja preciso morrer para renascer”

Mesmo os que ainda acreditam falam em voz baixa.

O Boavista Clube promete resistir, reconstruir e salvar o nome. Lançou campanhas de apoio e apelou aos sócios. Mas o tempo corre depressa. Sem SAD estável, sem receitas televisivas, sem investidores, o clube volta a ser amador num futebol que já não perdoa romantismos.

Há, porém, quem veja nesta queda uma oportunidade.
“Talvez seja preciso morrer para renascer”, diz Adolfo Miranda, veterano que nunca deixou de pagar quotas: “O Boavista já renasceu uma vez. Pode voltar a fazê-lo. Mas desta vez tem de ser dos sócios — e só deles.”

O Bessa, fantasma e promessa

À volta do estádio, a cidade segue o seu ritmo. Os carros passam, as luzes dos prédios acendem-se, as pessoas olham sem olhar. O Bessa fica ali, imóvel, como um fantasma à espera de um novo amanhecer.

Na porta principal, alguém escreveu com tinta preta: “O Boavista nunca morre.”

Talvez não morra. Talvez sobreviva em fragmentos — num clube distrital, numa memória, num cântico rouco. Mas há um país inteiro que o vê definhar, lentamente, diante dos seus olhos.

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