Vela para cegos: associação leva deficientes visuais ou auditivos a navegar na Baía de Guanabara

Fernando Araújo sentia a brisa do mar no rosto, ao leme de um iate de 12 metros que deslizava pela Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, sob um sol radiante.

Navegava com confiança, apesar de não conseguir ver a paisagem deslumbrante ao seu redor, incluindo o icónico Pão de Açúcar.

“Estão a ser guiados por um cego!”, brincou Araújo com os restantes marinheiros. Perdeu a visão pouco depois de nascer, devido ao excesso de oxigénio na incubadora.

Araújo foi um dos cinco brasileiros com deficiência visual ou auditiva que recentemente aprenderam os princípios da navegação num iate, durante um curso de três dias organizado pela associação ambiental ‘Nas Mares’.

Os marinheiros estreantes começaram por aprender o básico nas embarcações da marina principal do Rio, antes de testarem os seus conhecimentos na Baía de Guanabara, o vasto porto natural no coração da cidade.

Aos 31 anos, Araújo já é praticante de skate adaptado e sabe o que é tentar manter-se de pé.

Mas a vela “é muito diferente”, disse, acrescentando: “Nunca imaginei ser comandante de um barco.”

Um ano antes de acolher os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, o Brasil aprovou a ‘Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência’, que visa eliminar barreiras no acesso aos transportes, habitação, serviços, educação e desporto.

O maior país da América Latina também enfrentou a questão do financiamento, destinando 0,87% da receita total das lotarias ao desporto paralímpico.

Eduardo Soares, professor de educação física de 44 anos, natural de São Paulo, que participou no curso gratuito, disse que essas mudanças foram transformadoras.

“Nos últimos 10 anos, as coisas tornaram-se muito mais fáceis”, afirmou Soares, que nasceu com deficiência visual.

Guiar pelo som, cheiro e toque

Cerca de 6,5 milhões dos 210 milhões de habitantes do Brasil têm deficiência visual e 2,3 milhões têm deficiência auditiva, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Embora muitos países ricos, como a Austrália, Reino Unido, França e Estados Unidos, tenham associações de vela para cegos ou pessoas com baixa visão, são poucos os latino-americanos que têm oportunidade de comandar um barco.

Araújo, fã de desportos radicais, disse que a vela é uma forma de combater o isolamento que muitas pessoas com deficiência enfrentam, já que “muitas não gostam de experimentar coisas novas.”

O seu apurado sentido de audição, olfato e tacto tornaram-no, a ele e à sua tripulação, particularmente sensíveis a estímulos não visuais no barco, como a direção do vento e as vibrações do casco.

“As minhas capacidades sensoriais ajudaram-me a manter o barco no rumo certo”, disse, com orgulho.

Juliana Poncioni Mota, diretora da ‘Nas Mares’, contou que teve a ideia de oferecer as aulas quando estava no mar com um rapaz cego, de 13 anos.

Deu por si a tentar descrever-lhe a beleza ao redor em termos visuais.

“Fez-me repensar como traduzir o que vejo para alguém que não tem essa perceção (visual)”, explicou.

Como o seu monocasco não está adaptado para pessoas com deficiência, ela e os outros instrutores de vela descrevem detalhadamente a cada participante a localização e as características do leme, do mastro, da retranca e das velas.

Um intérprete de língua gestual transmite as instruções aos formandos com deficiência auditiva.

Depois, o toque é essencial para dominar os conceitos.

Os aprendizes exploram com as mãos todos os instrumentos do barco, assim como uma maquete da embarcação e de uma baleia-jubarte, para o caso de se cruzarem com um desses grandes cetáceos que migram para a costa do Rio de Janeiro, entre junho e agosto, para acasalar.

Para Rodrigo Machado, ex-nadador paralímpico de 45 anos que se estreava na vela, assumir o leme implica “resolver tudo na cabeça, sem ver”, o que, segundo ele, é algo que os deficientes visuais fazem todos os dias.

“Na rua, tentas não bater em nada, é normal”, disse.

Neste passeio, para desilusão dos participantes, não ouviram o canto das baleias pelo microfone subaquático.

Mas todos prometeram voltar a molhar os pés em breve.

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